quinta-feira, 14 de junho de 2012

Concepções sobre Surdez


As Concepções sobre a Surdez
Lázara Cristina
Dalvani Ferreira
Elisabeth Figueiredo
Paulo Sérgio de Jesus
A surdez sempre fez parte de todas as comunidades etnográficas e culturais.
No entanto, as necessidades das pessoas surdas, em geral, não são percebidas pelos
ouvintes, talvez isto aconteça pelo fato da surdez não ser algo que os incomodem
diretamente como a marginalidade e a violência. Neste contexto, a pessoa surda e
suas demandas acabam sendo ignoradas.
Ao longo dos anos a concepção sobre a surdez foi sendo construída dentro
desta indiferença, surgindo assim inúmeros equívocos em relação ao surdo, a surdez
e a sua educação. As dificuldades no tocante à educação das pessoas surdas
encontram suas raízes no fato de esta encontrar-se aliada aos parâmetros da
educação especial, que esteve ao longo da história aliada à filantropia. Neste sentido,
enquanto a educação em geral é vista como um direito e um dever do estado para
com o cidadão, a educação especial era entendida como um “favor”, uma caridade a
ser desempenhada por pessoas de bom coração e que praticavam a benevolência.
Neste contexto, a preocupação estava vinculada ao cuidar, ao amparar e ao
oferecer condições para sua reabilitação física e intelectual. Desta forma, o fato da
educação de surdos ter estado a mercê de entidades filantrópicas destituiu o seu
caráter institucional legal e formal subordinando-a a outros campos extra-
escolares.
No conjunto esta situação contribuiu para a escassez de pesquisas que pudessem
gerar o desenvolvimento de políticas educacionais para essa área.
Assim, nesta perspectiva, grande parte das construções históricas sobre
surdez acabou desencadeando uma relação entre sociedade e surdez extremamente
prejudicial ao surdo, em que este é encarado como ser doente, incapacitado que
precisa ser reabilitado auditivamente e oralmente para sua inserção social e
educacional. Neste campo, a educação também tem contribuído com essa situação,
uma vez que, durante séculos manteve os surdos subordinados aos ouvintes, numa
postura ouvintista. O Ouvintismo1, institucionalizado através do oralismo contribuiu de
forma significativa para as percepções equivocadas e limitadas a cerca dos surdos e
da surdez.
De modo geral, percebe-se que as pessoas não se envolvem em um diálogo
mais profundo com os surdos, emitem apenas sinais convencionais de cumprir as
normas sociais de boas maneiras. Assim, passam perto, acenam com a mão, fazem
1 Segundo Skliar, ouvintismo são todas as representações dos ouvintes sobre a surdez e sobre os surdos.
um sinal de “jóia” com o polegar e continuam seu caminho com a sensação do dever
cumprido e o surdo continua à margem da sociedade e da cultura ouvinte, sem
compreender, muitas vezes, os acontecimentos à sua volta. Esta postura mediante à
surdez é fruto de uma corrente de pensamento que respalda as relações sociais, na
qual a pessoa surda não é respeitada enquanto pessoa possuidora de traços culturais
peculiares e, como tal, com identidade própria e diferente das identidades dos
ouvintes.
Essa corrente de pensamento interfere diretamente, também, na formação das
identidades próprias dos surdos, que imersos nas “armadilhas” do ouvintismo perdem
suas características e não se constituem enquanto sujeitos surdos.
A história retrata toda essa construção de como as pessoas com
características biológicas e/ou mentais diferentes da maioria (ouvintes), eram tratadas
perante a sociedade. Os surdos como os demais sempre estiveram à margem da
sociedade. Assim, era necessário ensiná-los a falar, adaptá-los aos comportamentos
sociais aceitáveis no grupo, moldá-los segundo as necessidades de cada época para
que estes, aos poucos, fossem sendo aceitos no grupo e respeitados como pessoas.
A preocupação com a educação dos surdos surgiu a partir da necessidade das
famílias nobres em manter sua riqueza, pois o direito à herança era legalmente do filho
primogênito. Caso esse fosse surdo, só poderia recebê-la se possuísse condições de
comunicar-se com seu grupo. Daí, algumas pessoas começaram a criar metodologias
diferenciadas e estritamente sigilosas, com o objetivo específico de ensiná-los a falar.
O fato dessas metodologias não terem sido divulgadas e/ou registradas dificulta o
entendimento de como essa prática de educação perdura até os dias atuais. Desta
forma, o primeiro objetivo da educação das pessoas surdas esteve vinculado à
aprendizagem da fala, sendo a sua aquisição condição sine qua non para a assunção
de seus direitos civis enquanto cidadão.
Esses objetivos foram expressos através de uma concepção de educação do
surdo pautada pela abordagem clínico-terapêutica que aliada ao oralismo, como
corrente filosófica, lhe deu suporte para sua estruturação e desenvolvimento. Esta
concepção de surdez e educação esteve e ainda se encontra presente na história
deste grupo de pessoas em diferentes países.
Segundo a concepção clínico-terapêutica a preocupação central, expressa em
objetivos e as ações educacionais, precisa estar na busca pela correção de um
defeito” biológico presente na pessoa surda, ou seja, buscar/ criar mecanismos para
que a surdez seja superada. Este movimento retira o foco das questões pertinentes ao
campo educacional para o campo clínico, do tratamento da surdez, que é entendida
como uma doença que precisa ser medicada e curada. Esse processo minimiza os
aspectos relativos ao educar a pessoa surda em todos os seus aspectos cognitivos,
afetivos, emocionais e sociais. Neste movimento, em que se promove a supremacia
dos interesses clínicos em detrimento dos educacionais, surge nos contextos
educacionais a presença hegemônica dos conceitos de surdez que a vinculam a uma
questão de ordem médica, clínica, em detrimento de um entendimento do sujeito e
suas necessidades educacionais. Esta realidade,
(...) fez predominar uma abordagem clínico-terapêutica dentro dos
projetos educacionais. A escola, dessa forma, para além do espaço
pedagógico, se apresenta enquanto proposta clínica de atendimento
aos alunos surdos (KLEIN, 1998, p. 77).
Assim, a escola, enquanto espaço educacional das pessoas surdas,
respaldadas nessa abordagem assume um compromisso claro com todas as
ações reabilitadoras, em que o aprender a falar é primordial ao
desenvolvimento educacional e pessoal do surdo. Desta forma, ampliam-se os
conhecimentos científicos e tecnológicos acerca do aparelho auditivo, de
criação de próteses auditivas cada vez mais sofisticadas, buscando a
normatização do surdo. Nessa tendência os surdos são vistos como deficientes
e incapazes de crescerem sozinhos enquanto comunidade estando, portanto,
sempre dependentes dos ouvintes (Cf. SKLIAR,1998).
Nesta perspectiva, quando dectada a surdez nos exames médicos de
rotina e/ou situações familiares em uma criança, ela é encaminhada
imediatamente aos especialistas da área, como se a mesma fosse doente e
precisasse de um tratamento médico e curativo. Nesta realidade o parecer do
otorrinolaringologista torna-se mais importante2 que as orientações
pedagógicas e/ou aquelas das comunidades surdas.
Assim, a criança desde cedo, passa a ter muitos compromissos diários
com especialistas buscando corrigir o seu “problema”. As visitas aos
fonoaudiólogos tornam-se constantes e cansativas, tomando a maior parte do
seu tempo disponível, passando assim, a não ter tempo para se dedicar à
educação escolar e, mesmo ser criança. Estas atividades, porém, são
destinadas apenas à aprendizagem da fala e a atender às expectativas dos
pais, que com a descoberta da surdez sentem-se confusos, sem saber que
atitudes tomar com seu filho “diferente”. Esta situação apesar de não garantir
2 Não desprezamos o valor do parecer deste profissional da saúde, o que questionamos e sua prevalência
em detrimentos de outras formas de encaminhamentos para a rotina familiar e social dessa criança.
uma qualidade de vida melhor para a criança surda, torna -se a salvação para
os pais. Esse modelo de educação encontra respaldo em uma
pedagogia ortopédica, onde, muito mais que educar, se pretende
corrigir. Práticas voltadas a fazer falar, a se adaptar ao uso de um
aparelho auditivo, são exemplos de reabilitação que se estendem para
além do espaço da escola e chegam até os locais de trabalho.
(SANCHEZ, 1990 apud. KLEIN, 1998, p.77).
Atualmente existe uma preocupação em se descobrir a surdez o mais cedo
possível para que, em conformidade com o discurso clínico, busque medidas que
solucione o “problema” rapidamente, de forma que a criança se habitue precocemente
com a prótese, e possa assim, ser treinada a falar o mais cedo possível. Exemplo
disso, são as intenções em tornar obrigatório os serviços públicos de saúde a
realizarem nas crianças recém nascidas o chamado “teste da orelhinha”3.
Essa visão clínico-terapêutica se restringe a considerar a surdez apenas como
um problema biológico, não envolvendo sua dimensão mais ampla ligada aos fatores
sócio-culturais. Dessa forma, os surdos não são percebidos como sujeitos capazes de
resistir e constituir-se como grupo possuidor de uma cultura com traços próprios,
impedindo-os de atuar efetivamente estabelecendo condições para o exercício de sua
cidadania. .Assim,
Os surdos, quando não representados como sujeitos culturais, entram
no rol dos desajustados, desintegrados da sociedade ouvinte,
deficientes e incapazes de se desenvolverem sem o auxílio de grupos
dominantes culturalmente (LOPES, 114, p.1998).
Essa corrente de pensamento reforça a relação de poder que se estabelece
entre o ouvinte e o surdo, denominada por Skliar de ouvintismo, o que representa mais
do que a imposição da língua oral, mas condiciona a sua inserção à sociedade dos
ouvintes à aquisição de valores culturais e sociais próprios dessa cultura, ignorando a
existência de uma comunidade que possui identidade própria.
Contrapondo essa abordagem apresenta-se a visão sócio-antropológica, onde
o sujeito surdo não é visto como portador de deficiência, mas alguém diferente, no
sentido de não se enquadrar aos modelos impostos como normais.
Esta abordagem consegue aproveitar as habilidades compensatórias biológicas
desenvolvidas pelo próprio ser humano, uma vez que a deficiência não inibe o
desenvolvimento global, mas cria alternativas compensadoras que permitem
desencadear novos processos cerebrais.
3 Teste da orelhinha é um exame capaz de detectar em recém-nascidos há existência de perda auditiva.
Dentro dessa perspectiva a diferença se constituiu mais “(...) como uma
construção histórica e social, efeito de conflitos sociais, ancorada em práticas de
significação e de representações compartilhadas entre os surdos” (SKLIAR, 12,
p.1998).
Assim, não é possível perceber a comunidade surda como um grupo
homogêneo, mas enquanto sujeitos diferentes com identidades próprias e distintas
que integram, também, grupos com características diversas. Um olhar sobre a surdez
respaldado nesta abordagem possibilita uma compreensão mais conjuntural,
permitindo assim, uma análise que considere fatores específicos como etnia, gênero,
condições sociais, valores culturais como elementos indispensáveis à compreensão
das multifaces constituintes na formação dessas identidades e grupos.
A compreensão das comunidades surdas perpassa por uma leitura ampla da
sociedade em geral, uma vez que estas estão imersas neste todo, sofrendo suas
influências sociais, econômicas e culturais, as quais interferem diretamente na
construção de suas identidades individuais e de grupo. Por exemplo, quando
encontramos com um surdo pedindo, vendendo adesivos, balas, etc., apelando para a
sua “deficiência” como meio de sensibilizar as pessoas, isto é fruto de um contexto
geral, no qual se apresenta o fato de um desemprego estrutural, que atinge também o
surdo. Desta forma, ele não trabalha porque não quer, não é capacitado para o
mercado de trabalho, mas porque as condições de trabalho são limitadas para todos.
A compreensão do que vem a ser surdez interfere sobremaneira em todas as
práticas sociais e educacionais, dependendo do conceito que se tem, são atribuídos
significados e construído sentidos acerca dos contatos e/ou realidade desse grupo de
pessoas, do qual, muitas vezes não fazemos parte.
Discutindo o conceito de surdez, em um de seus textos, Skliar (1998, p.13) a
define como “uma diferença construída histórica e socialmente, efeito de conflitos
sociais, ancorada em práticas de significação e representações compartilhadas entre
os surdos”.
Nesta perspectiva a compreensão sobre surdez ultrapassa os limites do
biológico, para ser entendida de forma ampla, histórica e social, não a partir de uma
visão unidirecional, mas de uma visão que contemple olhares múltiplos sobre vários
aspectos, buscando uma compreensão capaz de representar, de forma mais
abrangente, os seus significados em diferentes momentos históricos e conjunturais.
Uma mudança de pensamento frente essa realidade inicia-se com a destituição
dos esteriótipos que envolvem o surdo, atribuindo-lhes características que não
condizem com a realidade. Isto se faz necessário para possibilitar aos surdos e
ouvintes uma ressignificação da surdez, garantindo-lhes a possibilidade de conquistar
espaços dentro da própria comunidade surda e da sociedade em geral.
A ressignificação da surdez, porém, precisa ultrapassar o nível das discussões
teóricas e alcançar novos limites, como contribuir com a elaboração de políticas
educacionais e profissionais mais efetivas às condições e necessidades específicas
dos surdos, tanto no âmbito da formação geral do cidadão quanto no da preparação
para sua inserção no mercado de trabalho. Estas conquistas precisam garantir uma
condição eqüitativa em todos os sentidos, ultrapassando um direito estabelecido com
base numa limitação biológica.
Essa visão encontra-se ainda no campo do teórico, uma vez que é necessário
um tempo considerável para que certas estruturas sejam abaladas para que outras
sejam apreendidas, mesmo que, em partes, na realidade concreta da vida das
pessoas.
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